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Carolina Ribeiro

O Digital precisa do Natural

O avanço da tecnologia digital trouxe inúmeras facilidades e oportunidades para a nossa vida cotidiana. Mas trouxe também grandes problemas. Isso porque o uso excessivo e inadequado dessas ferramentas pode causar ansiedade, comparação, tédio e até mesmo vício e violência, além de outros problemas, que costumo nomear didaticamente como “vilões”.

 

Nomear e identificar os problemas é importante. Mas traçar planos e estratégias para resolver essas questões é a principal parte de nosso trabalho. E, nessa busca por soluções, uma das estratégias é a reconexão com o natural.

 

Quem passou pela infância no século passado consegue se lembrar de como era ser criança naquele tempo. Com mais espaço ao ar livre (mesmo no meio de grandes cidades) tínhamos mais contato com a natureza e entendíamos melhor o mundo que nos rodeava. Aprendíamos desde cedo que o leite não dava em caixinhas e melancias não nasciam em árvores. Mas, de uns tempos pra cá, muito disso se perdeu. Cada vez mais dedicados às relações e afazeres no mundo digital, estamos perdendo o contato com o natural.

 

Em seu livro “A Última Criança na Natureza”, Richard Louv apresenta o termo Transtorno do Déficit de Natureza (TDN), o que ele traduz como o impacto negativo da falta de natureza na vida das crianças. Fundador do Movimento Criança e Natureza, ele dissemina pesquisas que mostram como a presença da natureza na infância está ligada ao bem-estar físico, social, emocional e escolar.

 

Natureza x Natural

 

Quando falamos sobre o natural, obviamente nos referimos à natureza, o meio ambiente e todos os seres que nele habitam. Mas não é apenas a essa natureza que devemos nos referir. Estamos nos referindo à natureza humana, ou seja, algo que faz parte de nossa essência enquanto seres humanos.

 

Sentir, respirar, descansar. Tudo isso é natural. E pode até soar alarmante, mas a entrega de muitas pessoas ao digital já está comprometendo essa conexão com o natural. Quer um exemplo bem presente em nossas vidas? Alimentar-se é um ato natural que envolve vários sentidos: olfato, paladar, visão, tato e até mesmo a audição. Ao recebermos nosso prato, muitas vezes, antes de vê-lo, já somos capazes de sentir seus aromas. Então, podemos sentir sua temperatura, sua textura, escutar eventualmente o barulho que sua crocância faz e finalmente sentir os sabores que ele traz. Hummm, que delícia!

 

Nos dias de hoje, porém, muitas crianças são privadas dessa construção de repertório, pois seus olhos, ouvidos e atenção estão tomados pelas telas do celular. Enquanto escrevo esse texto, posso me lembrar de algumas crianças que só comem quando estão em frente a uma telinha.

 

E não são apenas os sentidos que esse ato compromete. Da mesma forma, o ato de sentar-se à mesa, interagindo com as pessoas, promove algo totalmente natural do ser humano: a socialização.

 

Aliás, uma pesquisa realizada em fevereiro de 2022 pela Kaspersky - empresa que é referência mundial em tecnologia no desenvolvimento de software de segurança - mostra que, se os pais usam celular durante as refeições, seus filhos ficam, em média, 40 minutos a mais por dia nas telas. Impressionante, não é?

 

Percebe o quanto o digital pode nos afastar do natural no dia a dia? Dei um exemplo de uma criança, mas te convido a refletir qual foi a última vez que você saboreou um café sozinho, sem ter se deixado levar pelo rolar de tela…

 

Habilidades (e felicidade) comprometidas

 

Na minha atuação como especialista em consciência digital, me deparo diariamente com pais aflitos em ensinarem seus filhos a lidar com a tecnologia. Seu foco muitas vezes se concentra na ferramenta, mas, na real, o que devemos promover são valores humanos - habilidades fundamentais para as interações humanas, sejam elas feitas em um contexto digital ou analógico. Afinal, os mecanismos ligados ao desenvolvimento do senso crítico e o autocontrole podem estar envolvidos tanto na capacidade de seu filho jogar apenas um jogo no celular e parar, mas também na de comer apenas um pedaço do chocolate e não a barra toda.

 

Essa desconexão com o natural provocada pelo digital pode ter consequências e comprometer o desenvolvimento pessoal e profissional das futuras gerações. No livro "21 Lições para o Século 21", Yuval Noah Harari destaca quatro habilidades essenciais que farão diferença na educação dessa geração: criatividade, comunicação, colaboração e pensamento crítico. Essas habilidades são consideradas fundamentais para que as crianças possam se adaptar e prosperar em um mundo em constante mudança e enfrentar os desafios do século 21.

 

Ou seja, pensar de forma original e aplicar a imaginação em diferentes contextos, saber se comunicar efetivamente, pensar coletivamente, ser capaz de trabalhar em equipe e compartilhar responsabilidades e ter habilidade de analisar, avaliar e interpretar informações de maneira objetiva e fundamentada nos parecem ser skills muito mais importantes que saber programar ou ter fluência em duas línguas, não?

 

Ainda fazendo a analogia com um idioma, pergunto: é mais importante a fluência ou o que está sendo dito, como e para quem?

 

Inteligência artificial ou humana

 

Há pouco tempo, começamos a passar juntos e subitamente pela democratização da inteligência artificial. E os avanços não param. Pelo contrário, só aumentam, em velocidade exponencial.

 

Mas será que existe alguma chance dos avanços tecnológicos se voltarem contra os seres humanos?

 

A tecnologia em si é neutra. Ela não age para o bem, nem para o mal. Quem tira a sua neutralidade é quem dá o uso a ela, ou seja, o ser humano. Então, é nossa responsabilidade estudar sobre os mecanismos das ferramentas sim, mas priorizar nossa autoestima, nossa empatia, nosso desenvolvimento a partir de cada família, de cada casa no planeta, de cada lar!

 

Yuval Harari também defende que o autoconhecimento é fundamental para essa nova fase da inteligência artificial. Esse alerta me remete a um antigo, filosófico - e desafiador - conselho milenar: “conhece-te a ti mesmo”.

 

O quanto estamos priorizando nosso autoconhecimento de forma efetiva e profunda? E o quanto isso está inserido na educação das crianças? Assim como nossos ancestrais dominaram o fogo, nós dominaremos a tecnologia? Ou seremos dominados por ela?

 

Conexão com intenção

 

Quer dizer, então, que devemos desligar nosso wifi de casa, recolher os celulares e corrermos para as montanhas? Não! Bem, correr para a montanha eu realmente indico, como uma forma de reconexão. :)

 

O digital já faz parte de nossas vidas. Assim como o fogo, que inicialmente causava medo e desconforto, mas que, uma vez dominado, trouxe inúmeros benefícios para a humanidade, o digital também pode ser uma ferramenta poderosa quando utilizado com consciência.

 

Trago um exemplo prático da minha própria casa, da minha filha de 14 anos. Ela tem conta em uma rede social privada e, nessa plataforma, segue e aceita apenas pessoas que ela escolhe. Além disso, ela aproveita as redes sociais para expandir seus conhecimentos e interesses. Ela só se conecta com uma intenção clara, pois sabe que, se entrar distraída, provavelmente será "hipnotizada" pela liberação acelerada de dopamina que os algoritmos propositalmente geram.

 

Um aspecto importante é o pensamento crítico que ela desenvolveu. Através das redes sociais, ela teve acesso a referências sobre aquarela e decidiu fazer um curso gratuito nessa área. Hoje em dia, ela é capaz de criar pinturas incríveis usando essa técnica. Além disso, ela adotou o vegetarianismo com base em estudos e reflexões que encontrou nas redes sociais, mostrando sua preocupação com a sustentabilidade.

 

No quesito culinária, ela utiliza as redes sociais como fonte de receitas saudáveis e, ao invés de recorrer a um livro tradicional, assiste a vídeos no TikTok e aprende novas receitas, além de compartilhar suas próprias criações com os amigos na plataforma. Quando ela decide refazer uma receita, utiliza o TikTok como referência, assistindo ao vídeo que ela mesma gravou, fazendo a transição do online para o offline. Ela absorve conhecimentos e inspirações nas redes sociais, e então aplica esses aprendizados na vida real.

 

Essa história demonstra que ter uma rede social, mesmo em uma idade jovem, pode ser positivo, desde que seja usada de forma consciente e com propósito. O importante, reforço, é desenvolver o pensamento crítico, selecionar cuidadosamente as conexões e utilizar a plataforma para aprendizado, inspiração e compartilhamento. É o que chamamos de conexão com intenção – e difere imensamente do rolar de telas automático.

 

Aprendendo a se reconectar

 

Como pais e responsáveis, não podemos admitir a ideia de que as crianças dessa geração já nascem sabendo a “mexer” no digital. Cabe a nós guiarmos esse caminho. A tecnologia representa uma evolução e várias mini revoluções em nossa sociedade, e isso inclui a forma como educamos nossos filhos.

 

Voltando à analogia do fogo, muitos pais não estão ensinando habilidades básicas, como acender um fogão. É preocupante pensar que uma pessoa possa atingir os 18 anos de idade sem saber utilizar um fogão corretamente ou entender que uma frigideira fica quente ao fritar um ovo. Mas também é preocupante pensar que uma pessoa possa chegar a essa idade sem saber os riscos que a internet representa, tanto pelo seu uso excessivo quanto pelo não uso (conheço pais que se orgulham em dizer que os filhos de 16 anos não têm rede social ou celular).

 

É fundamental ensinarmos aos nossos filhos como ter autonomia, mas esse é um processo que demanda tempo, disponibilidade e atenção. Uma transição de corregulação para a autorregulação. Com conhecimento, diálogo e mantendo a responsabilidade da hierarquia parental que assumimos com a chegada dos filhos, podemos potencializar o desenvolvimento de habilidades de vida como a autorresponsabilidade, a proatividade, a paciência, o respeito, a autoestima que essa geração tanto perdeu… Enfim, as habilidades intrapessoais que didaticamente vou chamar de "heróis".

 

Tenho o objetivo de educar filhos autônomos e sei que isso exigirá um caminho mais longo. No entanto, no final desse percurso, todos nós seremos mais capazes, mais criativos, mais felizes e mais resilientes.

 

Seguimos juntos por essa nobre e urgente causa de desenvolver a consciência digital. De dentro para fora. Uma consciência plena na era digital.


O digital precisa do natural

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